O Homem do Comboio

Muito se tem escrito sobre os heróis da História. Ponto comum nessas narrativas é o realçar da coragem, da ousadia, da iniciativa desses homens e mulheres cujos feitos ficaram para as gerações posteriores como marco de valentia. E, no entanto, a maioria dos descendentes de Adão é caracterizada pela falta de ousadia.

Milhões em todo o mundo vivem vidas pacatas, sem nunca dar um passo que obrigue a Ter coragem ou fazer um ato que indique bravura. A falta de ousadia e de iniciativa parece contagiosa. Qual doença. Muitos se abrigarão sob o escudo da prudência lembrando que o “seguro morreu de velho”. E se é verdade que assim foi, também é notória que não lhe conhecemos o nome e para além do fato de que viveu até idade avançada não sabemos que tipo de realizações, se alguma sequer, chegou a alcançar. É caso para perguntar, será que o tal Senhor seguro chegou mesmo a viver na plena acepção da palavra? Faltando-nos arte para melhor defender a necessidade de ousadia na vida deixamos uma singela estória que talvez ajude a meditar nessa questão.

Havia um homem. Um homem já maduro e avançado em anos. Ele morava do lado de uma passagem de nível de movimentada linha ferroviária lá para os lados de Santarém, Portugal. Vamos chamá-lo de João, que é um nome tão bom quanto outro qualquer.

Era de estatura mediana, entroncado, músculos bem desenvolvidos por anos de labor manual, mas um pouco flácidos pelo chegar da idade. Rosto moreno, tostado de sol, com as rugas exageradas denunciando mais idade do que realmente tinha. Testa alta, serena, cabelos abundantes, bem aparados, já bastante grisalhos nas têmporas, bigode farto e bem cuidado. Os olhos de um negro límpido cheios de expressão, lábios grossos, mas de pouco falar, queixo quadrangular, masculino, mãos enormes, rudes, calejadas, fortes.

O Sr. João vestia invariavelmente calças pretas de lã por cima das ceroulas, camisa branca abotoada até o colarinho, colete do mesmo tecido e cor das calças e um paletó de tom cinza escuro um bocado gasto, sobretudo nos cotovelos, mas sempre asseado. Um boné de lã de tecido quadriculado em tons de bege e castanho terminava de compor o visual com botas alentejanas de cano alto e biqueiro larga.

O homem vivia sozinho. Tivera família no passado. Mulher e filhos. Mas, ou por infortúnio de doença, ou por desgraça de acidente, ou por mero acaso da sorte, estava agora só e isolado na sua pequena casa junto à passagem de nível. A casinha, em cuja frente se via apenas a porta e duas janelas em cada lado desta, estava cuidadosamente caiada e um jardim diminuto, mas belo, se podia ver à entrada. Era em frente a esse jardim que o homem se sentava diariamente a ver passar o comboio. Ali nascera, crescera e se casara. Ali morava ainda, e ali esperava morrer. Nunca fora além da cidade de Santarém, ali perto onde o levavam as obrigações do negócio para vender o fruto da terra e já nem isso fazia nesses últimos anos em que já só trabalhava para o sustento próprio e comprava o que precisava na vendinha do mestre Tonho ali logo ao lado.

Dias e dias, tardes e tardes ele assistia à passagem das locomotivas por sua casa. Ao cruzarem aquela passagem elas diminuíam bastante a velocidade. O homem podia ver o interior das carruagens, os rostos das pessoas, as cores das roupas, os semblantes mais ou menos pesados. Admirava a beleza dos estofados da primeira classe, a macieza dos bancos da Segunda classe e a alegria do povo da terceira. Enlevava-se com o brilho dos metais novos nos carros que faziam transporte de passageiros e se entusiasmava com a quantidade de material que podia ser levado pelos enormes e quase intermináveis comboios de carga. Conhecia já a maioria dos maquinistas. Não de nome, só de rosto. E estes também o conheciam e cumprimentavam já com o boné nas mãos e um sorriso amigável ante a aparente onipresença do homem junto à linha férrea.

De tal maneira o Sr. João conhecia os trens que a ele lhe perguntavam horários e destinos e ele a todos respondia com exatidão matemática, acrescentando o andamento do dia e um possível atraso ou antecipação. Era para a maioria, o Ti João do Comboio, embora nunca, em toda a sua vida, tivesse embarcado num.

O melhor amigo de Sr. João era tal Manuel da Várzea, porque sua casa ficava num terreno baixo próximo ao Tejo e um tanto sujeita a inundações. Os dois se entretiam muitas tardes em jogos de cartas infindáveis em meio a conversas banais e a observação do movimento dos trens . A mesa pequenina colocada no jardim do Sr. João, cada qual sentado sobre um tosco banquinho de madeira , dois copos pequenos e uma garrafa de licor ou vinho compunham o quadro já conhecido na vizinhança .

- Olá Ti João, Olá Senhor Manuel (dizia uma moça que passava)

- Olá rapariga (retribuiu o Manuel)

- Olá Margarida (devolvia atencioso o Sr. João tirando o boné)

- Então, a jogar? (brincava ela)

- É para matar o tempo (desculpava-se o Manuel)

O João só encolhia os ombros.

- Então Ti João o comboio do Porto, a que horas chega? (perguntou ela)

- Olha filha (informava o homem do comboio) deve aí estar a qualquer momento, pois o horário dele é 17h25min e já são 17h15min e como o de Coimbra passou hoje a modos que quinze minutos adiantado o teu deve estar mesmo aí.

- Obrigado Ti João, tenho que ir a correr (despediu-se ela).

Os dois observaram a bela trigueira que se afastava apressada e sorriam quase imperceptivelmente. Passados mais uns minutos o Manuel comentava:

- Deve estar à espera do rapaz do Vieira. Parece que estão prometidos ou o que é. Acho que agora se fala namorado.

O João encolheu os ombros.

- Tempos novos (continuava o Manuel) que na nossa época uma rapariga não ia a correr esperar-nos a lado nenhum e nem nós vínhamos da cidade em comboios de primeira.

O João levantou o sobrolho e encolheu os ombros.

_ Que rica vida leva o rapaz (falava ainda o Manuel). Sempre daqui para lá, de lá para cá nesses comboios. Isso é que é passear! O Ti João sempre havia de querer saber o que é que há depois do Porto.

O João não respondeu. Sua mente vagava com o comboio que pouco depois apitava e passava majestoso e imponente estremecendo a cancela. O maquinista fez sinal ao Sr. João que lhe retribuiu e suspirou. O que estaria no fim da linha? Quantas noites ela já sonhara com isso? Quantos dias ele levara a pensar nisso?

Por vezes, imaginava cidades cheias de luz, com ruas movimentadas, vitrines repletas de coisas caras e supérfluas, mas bonitas e coloridas. Cafés, bares, restaurantes, carros, transportes públicos e uma enorme confusão de gente de raças e cores diferentes com línguas estranhas e incompreensíveis. Como seria ver a cidade grande? Sentir aquele calor, aquele reboliço na azáfama da metrópole que não pode parar.

Outras vezes o homem pensava em paisagens belas e distantes, em pastos verdejantes, colinas cobertas de árvores de frutas, montanhas e rios, lagos e represas e o mar. Sim o mar de que lera e ouvira falar e até o vira uma vez na televisão da dona Joaquina. Como seria ver o mar? Dizem que é como um rio, mas não tem fim, ou os olhos não lhe vem o fim. Que mistério isso, seria verdade? Que paisagens e que contrastes esta linha de trem continha? Ela podia levar um homem a um mundo novo e quem sabe a uma nova vida. E a voz monótona do Manuel o acordava de suas divagações.

- Então eu já contei ao compadre aquela passada do Tonico da Praça no outro dia? Pois olha que foi dos diabos, o rapaz ia partindo tudo lá na feira do sitio por vias de um negócio mal feito por um cigano!

Sim, ele já conhecia a história. O Manuel fizera o favor de contá-la dúzias de vezes, mas a ouviria de novo com o mesmo ar de pachorra das outras vezes e provavelmente comentaria a mesma coisa que em outras ocasiões. Tanto fazia o Manuel não reparava que estava sempre a se repetir, coisas da idade. “E não tardo como ele” pensava o João e suspirava e a mente vagava.

Que tipo de pessoas poderia conhecer num comboio? Viajantes inveterados que viajam pelo simples prazer de se deslocarem. Homens de negócio, estudantes em férias, agricultores com arranjos na cidade, padres que vão para novas paróquias, senhoras que visitam a família. E que tipo de amizades se fariam ali? Ou no destino a que chegasse a quem se ligaria sua alma pela força de descerem na mesma paragem? Que emoções estariam reservadas a uma viagem destas? O medo do desconhecido, a alegria do encontro inesperado. A angústia da incerteza, a tristeza da saudade, o esclarecimento do conhecimento adquirido, o enriquecimento do coração, o alargar da visão, o reavivar do Espírito.

- E tudo terminou bem (falava ainda o Manuel) que a policia não estava lá para brincadeiras e fechou os ciganos a sete chaves e quase deu uma medalha ao nosso Tonico que saiu um valente rapaz.

- Fez ele muito bem (comentou o João sem pensar no que dizia e suspirou)

O jogo acabou e o Manuel se foi, deixando o amigo envolto pela luz exangue do anoitecer.

No dia seguinte o Manuel procurou seu parceiro de cartas logo cedo, mas não o achou em casa. Andou pela vila e não o viu pelo que calculou que fora ás terras buscar algo para o almoço. À tarde, porém, o João não estava, como habitualmente, no seu posto de vigia, a controlar a passagem dos comboios. O Manuel começou a se conturbar. Perguntou pelo amigo em toda a redondeza. Não, ninguém vira o Ti João dos comboios...

E foi a Dona Maria da Encarnação que desvendou o mistério. Vira o Sr. João na estação de comboios em Santarém a andar de um lado para outro em traje de domingo. Parecia tomado de uma febre! Inicialmente, ela pensou que ele esperava alguém, mas depois o viu encaminhar-se à bilheteria e pedir um bilhete até o fim da linha. Nem sequer se preocupou com o nome da estação final ou o preço da passagem. A mulher, curiosa, ficou a observar e viu com espanto o homem entrar no primeiro comboio que parou e só pode descortinar o seu sorriso de satisfação sentado à janela e falando com uma senhora que seria companheira de viagem.

Ai! Que o diabo do homem perdeu a cabeça! (foi a sentença extemporânea do Sr. Manuel arreliado por perder o parceiro de cartas e de entardecer).

E a notícia correu célere. O Ti João, aquele que por mais de 20 anos fora visto a espreitar a passagem dos trens sem nunca entrar num, aquele que sonhara com o destino das locomotivas durante décadas sem sequer chegar próximo da estação, o homem que ficara conhecido por toda a redondeza como o ti João dos comboios, finalmente e inexplicavelmente, embarcara.

Baseado em Neemias 11:4
" Quem observa o vento nunca semeará e quem olha para as nuvens nunca segará."

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