(Conto baseado em história real)
_ Pois, eu repito o que disse! (reiterou o outro rindo)
Maldita e pejorativa, a frase lhe escapuliu dos lábios, qual cuspidela fétida de tuberculose terminal, levantando uma onda de risos e provocações do bando reunido.
O menino olhava o inimigo com os olhos injetados de sangue. Era pequeno, talvez 10 anos, franzino e branquinho, de cabelo louro como uma espiga de trigo madura e certamente mais fraco que o adversário. Sem medir as consequências de seu ato fútil, carregou sobre o outro cheio de fúria justificada.
O grandalhão, bem uns 15 anos, braços de homem acostumado ao trabalho pesado limitou-se a se desviar ligeiramente e aproveitar o embalo do garoto para o projetar sobre o chão de cascalho. A patota riu alto, divertida. As provocações e gargalhadas cresciam de tom à medida que o desastre era mais evidente.
O resultado foi tão mal ou pior do que o anterior. O saldo foi um olho negro e toda a turma o rodeando com insultos. Ele se deixou ficar no chão chorando baixinho, derrotado, humilhado, destruído.
Aquela tinha sido a vingança covarde dos que não podiam competir com ele na sala de aula . Desde que chegara ali não se limitara a ser estrangeiro, o “russinho”, o protestante. Era também o melhor aluno em tudo, querido e admirado dos professores, bajulado dos pais, bem visto pelas meninas. Estas coisas se pagam caro aos 10 anos. E o carrasco fora bem escolhido!
O Rui não era muito alto, mas trabalhava como ajudante de mecânico há vários anos e ganhara músculos de ferro. Era repetente já de fama maior, só por isso ainda circulava entre a criançada. No dia a dia era pacato e calmo, sempre bem disposto e de olhar submisso. Mas o tinham excitado com mentiras e provocado até que servisse de vingador sobre o loirinho.
Ele cumprira seu papel sem grande gosto. Até uma ponta de remorso parecia o atacar, mas o coração embrutecido de adolescente que não tivera infância não se deixava tomar de ternura. A única linguagem que conhecia era a da violência. Em casa e na oficina era ele que apanhava. Ali , quem dava as cartas primeiro era ele e se não era grande motivo de orgulho vista a diferença de tamanhos, servia-lhe perfeitamente de compensação.

Finalmente perdeu o cortejo blasfemador ao chegar à sua rua. Mas isso não lhe aliviara o coração. Restava enfrentar a familia e isso ele teria que o fazer sozinho. E ali estava sua casa. O sobrado mal pintado, a loja por baixo e a casa por cima, com vista para o interior.
Felizmente, a reação paterna foi bem mais suave do que ele previra. Sua explicação do motivo da briga parecera ter servido de amortecedor ao estado triste em que se apresentava. Nem sequer se mencionou o fato de ter a roupa rasgada e o olho negro. Ficara apenas a promessa do progenitor:
- Amanhã estarei à tua espera na saída das aulas para que me mostres quem é esse Rui!
Aquilo entrou-lhe na alma como profecia messiânica! Teria afinal vingança, um salvador surgiria do fundo de um carro verde e como no grande e terrível dia do Senhor! Ele espalharia o terror entre as hostes de escarnecedores que o importunavam, e a partir dali reinaria soberano sobre toda a escola e arredores!

As aulas no dia seguinte foram um total desperdício. Como prestar atenção nos professores com a expectativa que o consumia por dentro? Olhava o rosto impávido do Rui, desconhecendo a destruição que o aguardava e isso lhe trazia tamanha satisfação que ria sem querer e procurava evitar tal reação, não fosse ela denunciá-lo.
Por duas ou três vezes durante a longa manhã tivera momentos de rara lucidez em que duvidou da vinda do pai ou do cumprimento da promessa. Mas, afogara a razão no seu lago de vingança. A injustiça tinha que ser resolvida, era urgente e necessária a retribuição. A vida lhe parecia sem sentido sem aquele corretivo dado ao mau elemento e à sua corja.
Finalmente, o último sinal soou, como trombeta divina, e lá estava o carro verde e o salvador imponente e com ar decidido. Aproximou-se tremendo e o pai o saudou perguntando:
- Quem é o Rui?
- É aquele! (mostrou-lhe excitado)
Aquele tolo ali, metido a esperto, que não sabe nada de história, nem de português ou de Inglês, ou matemática, ou seja que matéria for. Aquele ali que só sabe dar caneladas no futebol, se assoa para o chão, cospe a torto e a direito e diz palavrões. É aquele ali, com ar de parvo que nunca vai saber mais do que 2 + 2 e que merecia ser aniquilado como verme que era!
Já o pai galgara o espaço que o separava do guri. A mão erguera-se no ar e o menino esperou o barulho do primeiro estalo com os olhos semi-cerrados. Mas, qual quê? O pai apenas pousara a mão suavemente sobre o ombro do inimigo e lhe falava amistosamente, convidando a aproveitar a carona até à vila.

O Rui caíra na armadilha. Aceitara a carona e se instalara no banco da frente, ao lado do motorista. O menino atrás contava os minutos até o local do esperado massacre. Porém, o carro se dirigia estupidamente para a vila, pelo caminho mais curto e povoado. O pai falava mansamente ao Rui sobre o sucedido como se tivesse ocorrido um erro ligeiro. Queria a ajuda do rapagão para futuros erros do menino?!! Ele era o pai e ele deveria corrigir o filho, não um qualquer na rua.
Terminaram fazendo uma espécie de pacto. Se o garoto fizesse ou dissesse algo errado, o Rui tinha permissão para o denunciar ao Pai,que lhe aplicaria a disciplina devida à falta em causa. E assim se despediram na frente da casa do moço.
A criança no banco de trás desaparecera em sua decepção. Lágrimas sentidas lhe queimavam os olhos numa nova humilhação tão dificil de suportar quanto inesperada. Jamais teria esperado isso do próprio pai! Fora entregue como se fosse ele o verdadeiro culpado. Será que o homem não vira logo no rosto do Rui que era ele o culpado, que era ele o mau da estória?
O dia se arrastou qual caracol paralítico, sem ânimo, sem interesse, sem remissão. O menino se sentia traído, ultrajado e só. Como poderia enfrentar a escola? Como olhar para o grupo de escarnecedores? Como encarar o Rui? Tudo parecia desfocado e em meio a uma névoa de dúvida. A própria questão da justiça e do direito tinham sido violadas. E logo por quem se supunha ser o defensor sagrado de tudo o que era virtuoso na vida!
O que o garoto não sabia é que aquela conversa a que ele chamara traição tivera o mais profundo efeito no Rui. O moço, acostumado ao punho de aço do padastro e ao trabalho duro desde menino, nunca tivera alguém que o tratasse como igual. Nunca experimentara a palavra de confiança e respeito. Jamais encarara o olhar limpo de franqueza que conhecera nesse dia.
Aquela conversa e mais do que isso, aquela atitude o resgatara verdadeiramente! Tinham lhe dado uma nova visão do mundo, da vida e da própria humanidade. Uma centelha de honra e dignidade foi acendida em seu coração, e mesmo sem saber bem o que fazer com ela o rapaz sentia que era algo tão bom que precisava ser valorizado. No seu coração de pedra surgira uma brecha e ali poderia brotar uma flôr de esperança e, quem sabe, se suas raizes não abririam outras brechas, deixando que a alma florisse em botão e a vida sorrisse afinal?
No dia seguinte, Rui olhou o loirinho com simpatia e quase carinho. Sem perceber ele era já parte essencial da solução do problema do garotinho assustado. E foi assim que, para surpresa do menino, quando dois malandros troçadores se aproximaram dele com más intenções, o gigante mecânico se interpôs e disse de sobrolho carregado e punho fechado numa voz rouca:
- Se tocar no miúdo, vai ter que se ver comigo ...
( Baseado em Romanos 8:28 )
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Joed Venturini